Derechos Humanos, Direitos Humanos, Human Rights

Sobre a imprescritibilidade da ação penal em casos de graves violações de direitos humanos

*** Este artigo é de autoria de Juan Pablo Albán Alencastro, Professor de Direito Internacional, Direitos Humanos e Direito Penal da Faculdade de Jurisprudência da Universidade São Francisco de Quito, Equador. Foi originalmente escrito em espanhol (tradução nossa) e publicado, em 25 de outubro de 2013, em http://prohomine.wordpress.com/2013/10/26/sobre-la-imprescriptibilidad-de-la-accion-penal-en-casos-de-graves-violaciones-a-los-ddhh/. A tradução e reprodução deste foi autorizada pelo autor.

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Recentemente no Equador existe um debate muito importante sobre a imprescritibilidade de certos crimes que constituem graves violações aos direitos humanos, como são as execuções sumárias, o desaparecimento forçado, e a tortura.

Pela educação jurídica que recebemos os advogados neste país (baseada mais no aprendizado das leis do que do direito como ciência), ainda é muito difícil para a maioria dos advogados criminalistas, acostumados à vigência absoluta dos princípios de legalidade e da lei mais favorável como pedras angulares do sistema penal,  compreender que em determinadas circunstâncias não possam invocar em favor de seus clientes a extinção da pretensão punitiva do Estado pelo transcurso do tempo.

Apesar disso, há varias décadas, o direito internacional vem ocupando-se deste assunto, a partir, dentre outras, da perspectiva de que uma democracia verdadeira e estável só pode ser alcançada se as graves violações de direitos humanos do passado não se repetem, e a melhor forma de assegurar esta não-repetição é evitar a impunidade de tais condutas.

No âmbito do Sistema Universal de Direitos Humanos, em 15 de abril de 1965, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, durante seu 21° período de sessões, aprovou a Resolução N° 3, na qual afirmou que “as Nações Unidas devem contribuir à solução dos problemas advindos dos crimes de guerra e dos crimes de lesa humanidade, os quais constituem graves violações do direito dos Povos, e que devem estudar particularmente a possibilidade de estabelecer o princípio de que para tais crimes não existe no direito internacional nenhum prazo de prescrição.”

Essa afirmação levou a Assembleia Geral das Nações Unidas a aprovar, em 26 de novembro de 1968, a Convenção sobre a imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, segundo a qual apesar de nosso país não ser Parte por ainda não haver ratificado o tratado, sim possui a obrigação, pela simples assinatura do instrumento, de não executar qualquer ação que possa contrariar seu objeto e finalidade (ver a respeito o artigo 18 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados).

Cabe destacar que através desse tratado internacional, o princípio de imprescritibilidade foi meramente positivado (isto é, codificado em um texto), e não enunciado, visto que a regra de imprescritibilidade operava à época como direito costumeiro internacional e, com efeito, já havia alcançado o estatus de norma imperativa (ius cogens). Portanto, as disposições de prescrição estabelecidas na lei interna não poderiam ser aplicadas àqueles delitos que constituem graves violações de direitos humanos, independentemente da data na qual foi assinado ou ratificado o tratado anteriormente mencionado, ou qualquer outro que se refira à mesma matéria, pois tais tratados unicamente codificam uma regra de costume internacional pré-existente. Assim, quando se invoca o caráter de imprescritíveis desses crimes, não estamos diante de uma aplicação retroativa da lei.

Em 1993, o Professor Theo Van Boven, então Relator das Nações Unidas sobre o Direito à Reparação das Vítimas de Graves Violações aos Direitos Humanos, ressaltou que: “a aplicação da prescrição frequentemente priva as vítimas de violações flagrantes dos direitos humanos das reparações a que têm direito. Deve prevalecer o princípio de que não serão suscetíveis de prescrição as reclamações de reparação por violações flagrantes dos direitos humanos” (E/CN.4/Sub.2/1993/8, para 135). A experiência ensina que, para as vítimas de graves violações aos direitos humanos e suas famílias, o transcurso do tempo não apaga as marcas do sofrimento, senão pelo contrário, provoca o aumento do stress pós-traumático que demanda assistência material, médica, psicológica e social por períodos prolongados de tempo ou de maneira permanente.

Mais recentemente, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou os Princípios e Diretrizes Básicas sobre o Direito das Vítimas de Violações das Normas Internacionais de Direitos Humanos e de Direito Internacional Humanitário a Impetrar Recursos e Obter Reparações, dentre as quais estão incluídas disposições em relação com a imprescritibilidade das ações derivadas de graves violações aos direitos humanos: “Não prescreverão as violações das normas internacionais de direitos humanos e de direito internacional humanitário que sejam crimes internacionais.” O conjunto de princípios também assinala que a prescrição de outras violações ou de ações civis não deveria limitar indevidamente a possibilidade de que a vítima interponha uma demanda contra o autor, nem ser considerada durante os períodos nos quais não haja recursos efetivos contra as violações das normas de direitos humanos e de direito internacional humanitário (Ver neste sentido Resolução 60/147 de 16 de dezembro de 2005, princípios 6 e 7).

Por outro lado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir da sua sentença no Caso Chumbipuma Aguirre e outros v. Peru, mais conhecido como Caso Barrios Altos, estabeleceu que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição, e as excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e sanção dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas as quais são proibidas por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos (Corte IDH. Caso Barrios Altos. Sentença de 14 de março de 2001, Série C N° 73, para. 41).

Na mesma decisão, a Corte Interamericana estabeleceu que, “à luz das obrigações gerais consagradas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana, os Estados Partes têm o dever de adotar todas as providências de qualquer índole para que ninguém seja privado da proteção judicial e do exercício do direito a um recurso simples e eficaz, nos termos dos artigos 8 e 25 da Convenção” (Corte IDH. Caso Barrios Altos. Sentença de 14 de março de 2001, Série C N° 73, para. 43).

Também no contexto de um caso contra o próprio Estado do Equador, a Corte Interamericana assinalou que “é inadmissível invocar quaisquer institutos de direito interno, dentre os quais se encontra a prescrição, a fim de impedir o cumprimento das decisões da Corte no tocante à investigação e sanção dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos” (Corte IDH. Caso Benavides Cevallos. Resolução de Cumprimento de Sentença. 9 de setembro de 2003. Considerando 6).

Outras dezenas de decisões no mesmo sentido poderiam ser citadas, porém basta indicar que a jurisprudência interamericana tem sido constante ao recordar aos Estados da região que devem garantir que nos processos internos sejam investigados, julgados e sancionados os responsáveis pelos fatos e que, para tais efeitos, devem se abster de recorrer a figuras como a anistia, a prescrição e a aplicação de excludentes de responsabilidade, assim como a medidas que pretendam impedir a persecução penal ou suprimir os efeitos de uma eventual sentença condenatória. O fundamento para esta asseveração são três princípios fundamentais de direito internacional: o cumprimento das obrigações internacionais de boa fé (pacta sunt servanda), a prevalência do direito internacional sobre o direito interno (primazia), e a necessidade de conferir vigência material à norma internacional (effet utile).

Por outro lado, é necessário reconhecer que a jurisprudência interamericana também se pronunciou no sentido oposto, isto é, que a proibição de aplicar a prescrição da ação penal não alcança todas as violações de direitos humanos. A Corte Interamericana fez tal afirmação justamente no contexto de dois casos contra o Equador, Albán Cornejo e Vera Vera, e concluiu que, “a prescrição em matéria penal determina a extinção da pretensão punitiva pelo transcurso do tempo, e geralmente limita o poder punitivo do Estado para perseguir a conduta ilícita e sancionar seus autores. Esta é uma garantia que deve ser devidamente observada pelo juiz para todo imputado de um delito”; porém aclarou concomitantemente que, “apesar disso, a prescrição da ação penal é inadmissível e inaplicável quando se tratam de violações muito graves aos direitos humanos, nos termos do Direito Internacional. A jurisprudência constante e uniforme da Corte assim o determinou” (Corte IDH. Caso Albán Cornejo. Sentença de 22 de novembro de 2007, Série C N° 171, para. 111; Ver também, Corte IDH. Caso Vera Vera. Sentença de 19 de maio de 2011, Série C N° 226, para. 118).

Em âmbito interno, a Constituição Equatoriana que entrou em vigor em 10 de agosto de 1998 já determinava em seu artigo 23.2, que, “as ações e penas por genocídio, tortura, desaparecimento forçado de pessoas, sequestro e homicídio por razões políticas ou de consciência, serão imprescritíveis” (a referência a esta regra ainda consta do inciso quarto do artigo 101 de nosso Código Penal); e a Constituição vigente contém uma regra similar no seu artigo 80 que estabelece que, “as ações e penas pelos delitos de genocídio, lesa humanidade, crimes de guerra, desaparecimento forçado de pessoas ou crimes de agressão a um Estado serão imprescritíveis.”

Além disso, a partir da reforma introduzida no ano 2010 em nosso Código Penal, foi incluído nesse corpo normativo a seguinte disposição: Art… (114.8) Imprescritibilidade – As ações e penas previstas para os delitos de genocídio, lesa humanidade, crimes de guerra, desaparecimento forçado, execução extrajudicial, tortura, ou crime de agressão a um Estado são imprescritíveis.”

Através dessas concepções, o legislador equatoriano deu os passos, como previamente havia feito o legislador internacional, para codificar uma norma de ius cogens que emana do costume internacional sobre a imprescritibilidade de certos crimes considerados graves violações de direitos humanos.

A grande pregunta agora é: ¿Nossas autoridades de justiça estão dispostas a aceitar esta realidade e rejeitar sumariamente alegações de prescrição da ação formuladas por processados em casos sobre graves violações aos direitos humanos? A resposta é complexa, e tentar formar a estrutura de pensamento de nossos penalistas, tanto aqueles que são operadores de justiça, como aqueles que em livre exercício assumem o desafio de representar aos suspeitos de graves violações aos direitos humanos, parece virtualmente impossível.

No entanto, considero que devemos manter a esperança. A iniciativa recentemente empreendida por nosso Ministério Público de judicializar este tipo de casos, mesmo sabendo que a primeira alegação da defesa dos réus será a prescrição, permite supor que alcançamos a consciência de que o Estado tem o direito e está no dever de evitar e combater a impunidade, porque a revelação pública e completa da verdade é o primeiro requerimento da Justiça.

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